Imaginem um filme-catástrofe em que uma mega Besta assola a Terra. Com apetite voraz, a Besta devora florestas inteiras e depois caga imóveis empilhados em arranha-céus de concreto, com cada apartamento repleto de armários embutidos. Com sede insaciável, a Besta enfia seus canudos no fundo da terra e dos mares para chupar petróleo feito uma criança fissurada em milkshake. Depois mete tudo em tanques de combustão interna espalhados por seu corpo e expele fumaça tóxica pelas fuças, gerando uma nuvem que eclipsa o Sol e depois cairá sobre a Terra como chuva ácida.
Com seu corpo imenso repleto de usinas que expelem toxinas, a Besta engole minérios e depois caga rejeitos e metais pesados nos rios, além de excretar plástico nos oceanos. Os peixes farão um banquete sinistro e depois os humanos comedores de peixes é que terão microplásticos atulhando seus aparelhos digestivos.
A Bestona ainda é feita de vários abatedouros onde dia a dia, numa banalidade do mal que poucos filósofos perscrutam, perecem violentamente uma miríade de “bestinhas” que, apesar de serem organismos sencientes, são tratadas como nada além de matérias-primas para a confecção de commodities como linguiças, hambúrgueres e bacon. Num frenesi de morte, a Besta devora bilhões de vidas em prol de monoculturas e frigoríficos, conseguindo caotizar o clima do planeta, tudo para que outras bestinhas, que curiosamente se auto-decretaras como “racionais”, possam enchar a pança de carne em ambientes com ar condicionado.
Ainda que todos os termômetros estejam indicando as temperaturas crescendo e glaciares derretendo, com o colapso da estabilidade que marcou o Holoceno nos últimos 12 milênios, a Besta não cessa com suas atitudes febris. Nada parece capaz de refreá-la em sua sanha extrativista, poluidora e devoradora. Quando começam a esgotar-se os recursos planetários sem que se extenue sua fome, a Besta torna-se auto-canibal e enfia os dentes em sua própria carne.
Tudo isto poderia nos fazer pensar no quadro acabrunhante de Goya, em seu retrato de um certo mito grego em que um deus bestial (Chronos ou Saturno) come seus próprios filhos para evitar o colapso de seu próprio domínio ameaçado. Mas a Besta em questão é descrita em analogia a outro mito – o de Erisícton – e serve para descrever a insanidade do brutalismo capitalista contemporâneo que nos arrasta ao ecocídio planetário e à <sexta extinção em massa na história da Terra.>
A Besta que estive descrevendo figurou em minha imaginação enquanto eu tentava dar sentido a esta tal de <Sociedade Autofágica desvendada pela obra de Anselm Jappe que tem por subtítulo “capitalismo, desmesura e autodestruição” e que a Elefante publicou em 2023 com tradução de Tadeu Breda>. Após uma leitura das 333 páginas do livro, devo fazer algumas correções aos parágrafos precedentes: imaginem que não se trata de um filme-catástrofe mas de um documentário; que nenhum de nós poderia com justiça se colocar fora da Besta, localizado em seu exterior; e que o nome do mega-monstro não é <Godzilla> mas… necro-capitalismo. Assim chegamos mais perto de termos criado um primeiro chão ou alicerce para penetrar mais a fundo na análise crítica proposta por Jappe.
Eu já havia <lido e resenhado uma impressionante e acabrunhante obra anterior do pensador alemão, Crédito à Morte (Hedra, 2013)>, e ficara impressionado por sua criticidade calcada no marxismo e na “crítica do valor” e da forma-sujeito. Naquele artigo, escrevi que a obra de Jappe afirma que “o capitalismo não é algo que diz respeito somente às estruturas da economia, da produção objetiva de mercadorias e serviços, mas também à nossa estrutura subjetiva: o capitalismo agarra-nos com seus tentáculos por fora mas também coloniza nosso mundo íntimo.”
Não estamos lutando de fora contra a mega-Besta: nós integramos a bestialidade, alguns com um índice maior de cumplicidade e conformismo, outros com certa resistência e desconforto; alguns devotados ao reformismo da Besta (pessoal, que tal passarmos um perfuminho francês na danada e vesti-la com roupas chiques?), outros militantes de uma revolução anti-bestial (mas como sobreviveríamos em um mundo pós-capitalista se, enquanto sujeitos, fomos condicionados e moldados para sermos sujeitos capitalistas e viciados nos consumos e conveniências que a Besta nos oferta enquanto nos devora?).
O fato de que cada um de nós de certa forma integra o corpo desta Besta coloca a tarefa não apenas da auto-crítica e da auto-desconstrução, em que nos esforçamos por sair do estado lamentável de integrados a esta bestialidade necrocapitalista; como não há auto sem alter, nem eu sem outro, tal situação coloca a tarefa hercúlea, nos campos da educação, da cultura, da formação política popular, de realizarmos bem mais do que 12 trabalhos conducentes ao advento de uma nova subjetividade e convivência que seja pós-capitalista – o socialismo, por mais que queiramos tanto frisar o componente econômico-político (a tomada proletária dos meios de produção, a conquista do poder de Estado para abolir a tirania de classe que dele se apodera), também demanda uma transformação da “forma-sujeito”.
O mito de Erisícton serve como ponto de partida e de chegada para a reflexão de A Sociedade Autofágica. Uma descrição do mesmo pode ser encontrada nas Metamorfoses de Ovídeio (VIII); também a Divina Comédia de Dante faz alusão sucinta a ele no Purgatório (XXIII).
“Erisícton era filho de Tríopas, que se tornou rei da Tessália após ter expulsado dali os habitantes autóctones, os pelasgos. Estes haviam consagrado a Deméter, a deusa das colheitas, um bosque magnífico. No centro desse bosque erguia-se uma árvore gigantesca, à sombra de cujos ramos dançavam as dríades, as ninfas das florestas. Erisícton, desejando transformar essa árvore em soalhos para a construção do seu palácio, foi até lá um dia, com servos munidos de machados, e começou a abatê-Ia. Apareceu-lhe então a própria Deméter, sob as feições de uma das suas sacerdotisas, para convencê-lo a desistir da empreitada. Erisícton respondeu-lhe com desprezo, mas os seus servos tiveram medo e quiseram evitar o sacrilégio. Erisícton, então, empunhando um machado, cortou a cabeça de um dos servos e em seguida derrubou a árvore, apesar do sangue que dela jorrava e da voz que dela provinha anunciando-lhe uma punição.” (JAPPE: Prólogo, p. 11)
Vemos aqui a figuração mítica do desmatamento vinculado a uma certa desmesura (ou húbris) – poderíamos lembrar de contos semelhantes de desmedida e punição em Ícaro, Prometeu, Tântalo, Sísifo e outros. Erisíction é só desprezo pelo bosque e só tem olhos para seu palácio; a cabeça cortada do servo é sinal suficiente de sua disposição para o brutalismo e a tirania. No mito, Deméter aparece como representação de uma divindade defensora da floresta e que faz um gesto em muito semelhante àquele dos liderados por Chico Mendes que desejavam impedir a derrubada da floresta amazônica através de técnicas como os empates – Jappe frisa que Erisícton é um “antepassado dos insanos indivíduos que hoje destroem a floresta amazônica” (p. 13). Como é costumeiro nas narrativas míticas gregas, a toda húbris corresponde uma némesis – todo exagero vil chama uma punição atroz.
“O castigo não tardou: Deméter enviou-lhe a Fome personificada, que através de um sopro penetrou no corpo do culpado. Erisícton viu-se então tomado de uma fome impossível de ser saciada: quanto mais comia, mais fome sentia. Devorou todas as suas provisões, seus rebanhos e cavalos de corrida; mas suas entranhas continuavam vazias, e ele, pouco a pouco, definhava. Consumiu, como um fogo que tudo devora, o suficiente para alimentar uma cidade, um povo inteiro… Chegou até a vender a filha, Mestra, para comprar comida…. Nada, porém, acalmava a fome de Erisícton, e ‘quando a violência de seu mal esgotou todos os alimentos / e à sua penosa moléstia deu novo pasto / ele mesmo dilacerou os próprios membros e se pôs a arrancá-los / mordendo-se o desgraçado para do próprio corpo se nutrir, mutilando-o’ – assim termina o relato de Ovídio. Só o desaparecimento, em vias de ser consumado, da familiaridade com a Antiguidade clássica pode explicar que o valor metafísico desse sucinto mito tenha até agora escapado aos porta-vozes do pensamento ecológico.” (JAPPE, p. 12)
O autor, destacando que há similaridades também entre este mito e aquele do Rei Midas (“que morre de fome porque tudo aquilo em que toca se transforma em ouro”), enxerga em Erísicton uma insanidade bastante contemporânea, que em linguajar moral poderíamos chamar de ganância – “a sede de dinheiro nunca pode se extinguir porque o dinheiro não tem como função satisfazer uma necessidade específica. A situação do capitalismo contemporâneo é a de um barco a vapor que só continua a navegar queimando pouco a pouco as tábuas do convés, do casco etc. Morrer de fome em meio à abundância – é essa, de fato, a situação a que o capitalismo nos conduz.” (p. 15)
Um exemplo bem ilustrativo é o da <Ilha de Nauru>, o menor país do mundo, que outrora foi chamado de Pleasant Island (Ilha Aprazível), mas foi tornado um território devastado e inabitável devido às suas jazidas de fosfato que foram pilhadas por uma mineração em estado de Erisícton-mania. (Saiba mais: The Guardian; M.I.T. Press) Nauru oferece numa escala de ilha algo que vem se desenrolando em macro-escala devido à sanha extrativista que assola o planeta e de que somos cúmplices, por exemplo, quando ignoramos que o processo produtivo de nossos celulares e laptops envolve a exploração de minérios como o cobalto no Congo, e que esta mineração está toda manchada com o sangue e o suor dos oprimidos congoleses que suam, se contaminam e morrem nas minas para que mega-corporações como a Apple possam lucrar com nossa dependência em relação a estes gadgets.
NARCISO VIRALIZOU
Boa parte do esforço analítico de Jappe perpassa pela psicologia crítica, ou seja, ele trilha uma senda aberta por autores que tentaram mesclar o materialismo histórico dialético com a psicanálise de matriz freudiana, como Wilhelm Reich, Erich Fromm, Herbert Marcuse, Norman Brown, dentre outros autores (alguns deles rotulados freudomarxistas). Sobretudo está em questão, em Sociedade Auto-fágica, o tema do narcisismo, ou do egocentrismo, e sua relação com a Besta capitalista-extrativista-consumista aqui delineada. Para a decifração crítica do sujeito narcísico, hoje tão comum e disseminado, o autor debate obras de Christopher Lasch, assim como retoma e aprofunda seus estudos anteriores sobre Guy Debord.
Destaco aqui a tese Jappeana de que o narcisismo se tornou algo diferente de uma neurose ou de uma perversão que aflige apenas alguns sujeitos passíveis de serem considerados como desviantes da norma, para torna-se um alicerce normalizado da forma sujeito do capitalismo atual:
“O narcisismo está tão ligado ao capitalismo pós-moderno, líquido, flexível e ‘individualizado’ – cuja expressão mais completa se encontra na ‘rede’ – como a neurose obsessiva estava ligada ao capitalismo fordista, autoritário, repressivo e piramidal – cuja expressão característica se encontrava na linha de montagem. (…) Para o narcísico, todas as pessoas têm o mesmo préstimo e são intercambiáveis: com efeito, elas não são apreendidas como seres autônomos, cada qual com sua própria história, e que deveriam ser respeitadas para instauras relações mutuamente enriquecedoras, mas sim como figurantes que devem interpretar um papel no cenário interior do narcísico… O narcísico pode entrar numa crise de raiva e despedaçar uma máquina que não funciona ou uma gaveta que não abre; age exatamente como faz, ou gostaria de fazer, com os humanos que se furtam ao seu poder e goram suas expectativas, quer seja o parceiro amoroso ou um inferior hierárquico no trabalho (é sabido que são nos diversos níveis da gestão de empresas que se encontram perversos narcísicos por excelência; sondagens empíricas chegaram de fato a demonstrar que, entre os dirigentes de empresas, a porcentagem de narcísicos é muito elevada. Segundo parece, ser um perverso narcísico ajuda muito a fazer carreira.” (JAPPE: p. 156)
No mito grego, Narciso é conduzido a um desenlace trágico: apaixonado por sua própria imagem refletida no lago, e incapaz de dar bola para a ninfa Eco que a ele entregava sua nudez sedutora e um convite para o erotismo alterofílico, ele afoga-se tentando agarrar a si mesmo. A morte precoce do jovem Narciso poderia ser também um emblema desta perversidade solipsista, hoje massificada, em que o sujeito pensa poder nutrir-se apenas de auto-amor e de auto-estima, sem necessidade do outro senão como acessório no inflamento de seu ego totalmente auto-centrado. Vemos nisto na cultura da selfie e na quantidade de perfis em rede social em que o sujeito usa e abusa de sua auto-imagem para conquistar “popularidade” cibernética. Vemos nisto também na moda dos influencers que sempre postam conteúdos em que o são protagonistas, gurus sob os holofotes da rede.
Como tentei mostrar em outro texto, o filme American Psycho (Psicopata Americano), de Mary Harron, revela um desses sujeitos narcísicos e fetichistas em estado de desmesura, que é levado para o campo da psicose narcísica que tanto aflige CEOs e outros manda-chuvas do capitalismo corporativo. A análise de Jappe nos conduz a concluir que a forma-sujeito que prevalece na sociedade capitalista contemporânea conduz os entesouradores de capital a se tornarem semelhantes ao personagem tenebroso, nefasto, ultra-violento, assassino em série, interpretado por Christian Bale.
O tema do capitalismo como devorador de mundos, em que os sujeitos capitalistas são bocas de uma grande Besta voraz, conecta-se a outros projetos críticos que falam em um Capitalismo Gore (Sayak Valencia) ou um Capitalismo Canibal (Nancy Fraser). Mas poderíamos, é claro, retornar à fonte inesgotável da crítica ao capitalismo e suas devastações que é a obra marxiana, também ela sepre atenta às ressonâncias míticas e trágicas deste sistema de produção atual insanizado pela desmesurada acumulação, injusta distribuição, intoxicação física, psíquica e ecológica, movida sobretudo por uma ânsia de dinheiro (e do poder que este supostamente concede):
“Na sua genealogia lógica e histórica do dinheiro, Marx tinha mostrado que o entesouramento, forma prevalecente da acumulação de riqueza nas sociedades pré-capitalistas, era uma primeira manifestação, embora muito imperfeita, da natureza do dinheiro. Ela já contém in nuce a ilimitação: ‘O impulso para o entesouramento é, por natureza, sem medida. O dinheiro é qualitativamente, ou segundo a sua forma, sem limites, ou seja, representante universal da riqueza material, porque imediatamente convertível
em cada mercadoria. Mas, ao mesmo tempo, cada soma de dinheiro real é quantitativamente limitada, portanto também apenas meio de compra de efeito limitado. Esta contradição entre o limite quantitativo e a falta de limites qualitativa do dinheiro remete constantemente o entesourador para o trabalho de Sísifo da acumulação. Com ele ocorre o mesmo que com o conquistador do mundo que, com cada novo país, conquista apenas mais uma fronteira a ser transposta.'” (JAPPE: p. 203)
Sísifo, Narciso, Erísicton, Midas: os mitos proliferam. Seria um equívoco tentar buscar no acervo mítico da Antiguidade grega algumas chaves para a compreensão do que vivemos na atualidade? Parece-me que não: equívoco mesmo seria aderir ao esquecimento voluntário daquela sabedoria trágica que podemos aprender com os gregos e que não cansa de nos comunicar acerca dos vínculos entre a desmesura e sua punição. Obviamente, estas narrativas não devem permanecer em estado inalterado, apenas reproduzidas, mas devem ser reinterpretadas para nosso contexto em que o capitalismo industrial, extrativista, consumista, descartista, desmatador, especista, calcado na colonialidade, gerou o advento de uma catástrofe ecológica que para a maioria dos ouvidos o termo Antropoceno fracassa em comunicar a contento.
A Besta devoradora que em sua desmesura põe em caos o clima do planeta, que destrói florestas biodiversas para transformá-las em pasto, que aniquila rios com rejeitos de minérios, que enche oceanos com plásticos, que contamina o solo com metais pesados, que erige imensas babéis de lixo eletrônico, não é exterior a nós – somos co-partícipes deste drama épico, somos parcela deste hiper-objeto, somos bestinhas compondo a mega-Besta que é tão voraz que come até a possibilidade de vida digna para aqueles que ainda nem nasceram. Este sujeito perverso-narcísico, ganancioso e entesourador, egoísta ao extremo, tendo sido massificado na linha de montagem das subjetividades, atingiu, por sua própria proliferação quase cancerígena, um ponto de crise: não há possibilidade de seguirmos investidos nesta forma-sujeito e nesta economia-política que conduzem a esta devoração mundi, Erisícton-maníaca, sem que uma hecatombe faça o céu cair sobre nossas cabeças e sociedades. Jappe conclui voltando a seu ponto de partida, o mito de Erisícton:
“A húbris que impele de forma irresistível o rei da Tessália revela-se uma prefiguração espantosa do narcisismo da época contemporânea. Estaremos condenados a acabar como ele, devorando a nós mesmos depois de termos destruído a natureza? (…) Em todas as nossas considerações sobre o sujeito moderno, recusamos a ideia de uma sociedade mercantil claramente dividida entre dominantes e dominados, entre culpados e vítimas. Nenhum projecto de emancipação social pode deixar de ter em consideração a grande questão levantada há quase quinhentos anos por Étienne de La Boétie, a da ‘servidão voluntária’. Se quisermos seriamente dispor dos meios de encarar um caminho para sair deste sistema, é preciso, tanto na teoria como na prática, conseguir desenredar os infinitos fios da meada que leva os indivíduos a colaborarem – em diversos graus – no sistema que os oprime. A forma-sujeito é um destes fios mais importantes.” (JAPPE: p. 301)
Eduardo Carli de Moraes
Abril de 2024
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Publicado em: 26/04/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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